" E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo são meus, a não ser que me compare a certos insensatos cujo cérebro é tão perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bilis, que constantemente asseguram ser reis, quando são muito pobres, estar vestidos de ouro e púrpura, quando estão nus, ou imaginar ser cântaros ou ter um corpo de vidro? Mas, qual! Estes são loucos, e eu não seria menos extravagante se me guiasse pelos seus exemplos".
Descartes, Meditações
A loucura, como retrata esta pintura de Hieronymus Bosch, parece distante e por vezes ficticia aos olhos da nossa realidade. No entanto, ao nivel da psicanálise esta pode surgir logo na infância, quando a criança no processo de subjugação à autoridade dos pais, vai modelando o seu eu interior, ou seja, há uma auto-traição, ela nega-se a si mesma e a forma como se vê passa a ser a forma como os pais a querem ver.
Agora, transportando isto para o adulto (e aqui esta personagem acompanhou-o na sua cavalgada insessante pela vida), damo-nos conta que afinal esta realidade não estava tão distante assim.
Ela habita paredes-meias connosco. Visita-nos constantemente. Quantas pessoas não perderam o contacto com o seu eu interior, criando desta forma, um eu falsificado? Ou ainda de outro modo, quantos de nós não encarnamos a personagem que os outros querem ver em nós?
É verdade, e aqui parafraseando o prof. Fernando José Bronze, que estamos constantemente a afivelar máscaras. Sejam elas a de professora, aluna, colega, esposa, irmã, filha, etc. Mas também é verdade, que não podemos esconder as nossas vivências, percepções e sentimentos genuínos com que constantemente nos deparamos. É neste ciclo constante, do afivelamento de máscaras, que chegamos a um ponto em que verdadeiramente não sabemos quem somos, recalcamos de tal maneira a nossa verdadeira identidade que passamos a ser só por ser. É como se já estivessemos mortos mas sem saber.
Não será este relacionamento estranho com a sociedade que faz de nós mais loucos que os ditos loucos? Será a razão assim tão distante da sua madrasta loucura, ou serão simples irmãs zangadas e de candeias ás avessas com a vida?
Apelidamos de loucos aqueles cujas suas atitudes desvirtuam a dita razão, o convencional, e se afastam dos padrões "correctos e normalizados" mas será que aquele afastamento das nossas raizes humanas não será ele um vil ardil da negação de quem realmente somos? Ou será mais, a forma facilitada de fugirmos e ocultarmos os verdadeiros sentimentos humanos?
Talves, e caso optassemos por uma resposta positiva a estas questões, encontrassemos aqui, quem sabe, a razão pela qual é mais fácil odiar os outros, matar e voltar costas ao semelhante quando na realidade o que fazemos, é evitar o confronto connosco, com o nosso eu mais intimo.
Não será esta revolta,o ódio,o medo a si próprio que provoca este afastamento convulso do nosso ente querido?
Talves fosse mais fácil fazermos o processo de dentro para fora, sem vergonhas nem complexos. Como também referiu um professor meu de ontologia, é incompreensivel que o Homem tenha a pretensão de conhecer o universo quando ainda nem se conhece a si mesmo. Como é que podemos compreender os outros se constantemente fechamos a janela da nossa alma a nós e ao mundo?
Não somos quem queriamos ser, não fazemos o que desejámos fazer, enfim, sempre muitos nãos e poucas vezes sim.
Talves por isso, fiquemos surpreendidos quando alguém que consideravamos "de bem", "normal", "racional" de repente mata, viola ou rouba sem sabermos muito bem porque é que fez isso. Pois, na realidade, essa pessoa deixou cair a máscara sorridente e algumas vezes filantrópica e deixa destapado o horror que ocultava. Não será a loucura tudo isto? Ou melhor, não será a loucura um modo de vida?
É nesta fase terminal, aquela em que já não conseguimos colocar as máscaras e acabamos num protesto demoniaco contra tudo e todos.
Edvard Munch, Van Gogh, Schubert, Einstein, Nietzsche, etc, etc,etc, todos eles loucos, mas loucos saudáveis porque conseguiram dentro da sua loucura inteligente estravazá-la, de forma, a não serem consumidos por ela, e ... eis que o monstro sai sob a forma da mais bela arte. Como acima referi, também existiram aqueles cuja sua loucura teve frutos, mas que devastaram a humanidade e que não a sabendo manusear saiu sob a forma de terror. O individuo ao contrário daqueles cuja loucura é inspiração, porque deu-se a catarze, estes simplesmente largaram o monstro sem lhe ter posto as devidas rédeas.
É esta força criativa de se opôr à fraude que fá-los maiores e mais lúcidos que a maior parte de nós, cidadãos bem comportados, cuja virtude maior é a sanidade à semelhança Dos Tempos Modernos de Charlie Chaplin onde somos parte integrante da máquina. Em suma, os movimentos são sempre os mesmos, tanto ao nivel da esteira politica, religiosa...
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.